Integrantes do Levante Popular da Juventude promovem o primeiro ato público pela punição de torturadores depois que a Comissão Nacional da Verdade responsabilizou 359 agentes do Estado pelos crimes da ditadura e recomendou a revisão da lei que os beneficia
Eles não tinham nascido há 35 anos, quando a Lei de Anistia foi
aprovada no Congresso Nacional. Com a indignação dos que clamam por
justiça, cerca de 200 integrantes do movimento Levante Popular da
Juventude fecharam por 30 minutos a rodovia Washington Luís, na altura
da cidade paulista de São Carlos. Entre rolos de fumaça de pneus
queimados, eles pediram “punição aos torturadores da ditadura”. Foi o
primeiro protesto de rua em torno de um debate que recrudesceu a partir
do relatório da Comissão Nacional da Verdade: a Lei de Anistia deve
beneficiar os agentes de Estado que sequestraram, torturaram, mataram e
ocultaram cadáveres?
Sem poderes para processar ou punir, a Comissão da Verdade foi
explícita ao apontar responsabilidades e recomendar a revogação parcial
da Lei de Anistia. No relatório final, ela responsabiliza 359 pessoas
pelas “graves violações” ocorridas durante a ditadura militar
(1964-1985), entre elas os cinco generais que ocuparam a Presidência da
República no período – Humberto Castelo Branco, Arthur da Costa e Silva,
Emílio Garrastazu Médici, Ernesto Geisel e João Figueiredo. A inclusão
de Costa e Silva no rol de responsáveis pelos crimes que culminaram em
pelo menos 434 mortes e desaparecimentos forçados fez movimentar uma
retroescavadeira na cidade gaúcha de Taquari, onde ele nasceu.
Por ordem do prefeito Emanuel Hassen de Jesus (PT), que não se deu ao
trabalho de consultar os moradores, foi derrubado o busto de Costa e
Silva que estava desde outubro de 1976 na praça Lagoa Armênia. O mesmo
destino teve a placa informando ter sido naquele lugar que ele
“organizou seu primeiro pelotão de meninos”. A escultura foi transferida
para a Casa Costa e Silva, um centro de cultura criado na residência
onde ele passou a infância. Ficará em exposição permanente, ao lado de
uma cópia do relatório da Comissão da Verdade.
Três meses antes da derrubada do busto, a Câmara Municipal de Porto
Alegre já havia rebatizado como Avenida Legalidade uma via que se
chamava Castelo Branco. O novo nome remete à campanha desencadeada em
1961 pelo então governador Leonel Brizola para garantir a posse do
vice-presidente João Goulart, depois da renúncia do presidente Jânio
Quadros. Quase 51 anos depois do golpe civil-militar que impôs uma
ditadura ao Brasil, essas iniciativas refletem mudanças na forma de
encarar a lei que acabou anistiando aqueles que cometeram crimes em nome
do Estado.
Em países vizinhos que também amargaram ditaduras, o desfecho foi
diferente. Na Argentina e no Chile, 771 pessoas estão condenadas por
atos praticados durante o regime de exceção, segundo levantamento da
organização Human Rights Watch. Só na Argentina são 416 condenados.
Entre eles estava o ex-ditador Jorge Rafael Videla, que morreu por
causas naturais aos 87 anos, na cela de um presídio comum de Buenos
Aires, em março de 2013. Cumpria sentença de prisão perpétua por crimes
contra a humanidade. A mesma condenação pesa sobre a cabeça do sucessor
de Videla na Casa Rosada, Reynaldo Bignone.
No Chile, o general Augusto Pinochet encontrava-se em prisão
domiciliar quando morreu, aos 91 anos, em dezembro de 2006. O chefe da
polícia secreta de Pinochet, general Manuel Contreras, cumpre sentença
de 300 anos de prisão, pela tortura, sequestro e morte de opositores do
regime. Outros 352 violadores dos direitos humanos no Chile também foram
julgados e condenados. Em ambos os países, o processo de levar à
Justiça os antigos detentores do poder foi marcado por avanços e
retrocessos. Só que, ao contrário do Brasil, neles uma comissão da
verdade foi instalada logo depois da queda da ditadura. E foram
justamente os relatórios dessas comissões que forneceram a base para a
abertura de processos judiciais.
Instalada 27 anos depois de o último general deixar o Palácio do
Planalto, a Comissão Nacional da Verdade precisou investigar episódios
sedimentados – muitas vezes ocultados – no decorrer do tempo. Enfrentou
também resistência dos novos comandantes das Forças Armadas, que
insistem em não liberar a documentação produzida no período. Conseguiu
esclarecer apenas três dos 210 casos de desaparecimentos forçados. Ainda
assim, coletou depoimentos e documentos suficientes para concluir que
“a extensão da anistia a agentes públicos que deram causa a detenções
ilegais e arbitrárias, tortura, execuções, desaparecimentos forçados e
ocultação de cadáveres é incompatível com o direito brasileiro e a ordem
jurídica internacional”.
O tema é controverso. Ao receber o relatório, a presidenta Dilma
Rousseff fez referência à Lei de Anistia, sem citá-la de forma direta:
“Assim como reverenciamos os que lutaram pela democracia, também
reconhecemos os pactos políticos que nos levaram à redemocratização”. Na
prática, o acordo que pavimentou o retorno à democracia começou com uma
campanha popular por uma anistia “ampla, geral e irrestrita”. A meta
era abrir caminho para a volta dos brasileiros que estavam no exílio e
libertar os presos políticos. O projeto enviado ao Congresso Nacional
pelo governo do general João Figueiredo foi restrito (não completava
adversários do regime envolvidos em crimes de sangue) e concedia anistia
aos que cometeram crimes políticos ou “conexos”. Virou lei em votação
apertada – 206 a 201 – e o termo “conexos” abrigou os crimes cometidos
pelos agentes de Estado.
Em abril de 2010, o Supremo Tribunal Federal se manifestou contra
mudanças na lei, em ação impetrada pela Ordem dos Advogados do Brasil.
Oito meses depois, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o
Brasil a investigar e julgar os responsáveis pelos crimes cometidos
durante a repressão à Guerrilha do Araguaia. Para o tribunal, a Lei de
Anistia não é compatível com a Convenção Americana sobre Direitos
Humanos, assinada pelo Brasil em 1992. Por causa da divergência, o
Supremo está para se debruçar de novo sobre o tema e pode dar nova
interpretação à Lei de Anistia. Ações que tramitam na Justiça também
podem acabar excluindo os agentes repressores dos benefícios da lei. É o
caso da morte do deputado cassado Rubens Paiva, em maio de 1971. Como o
seu corpo jamais foi encontrado, o Ministério Público Federal defende
que se trata de um crime permanente. Não pode, portanto, ser anistiado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário