
O Salão Nobre da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, em São
Paulo, esteve lotado na noite desta terça-feira (29). Juristas,
acadêmicos, estudantes e diversos movimentos sociais se reuniram em um
ato público contra a PEC 171/93, que propõe a redução da maioridade
penal.
Entre os presentes, estava José Carlos Dias e Miguel Reale Junior,
ambos ex-ministros da Justiça de Fernando Henrique Cardoso, o ex-senador
e secretário de direitos humanos de São Paulo, Eduardo Suplicy, o
procurador geral de Justiça de São Paulo, Marcio Elias Rosa, o
presidente do Tribunal de Justiça paulista, José Renato Nalini, o
defensor público geral do estado, Rafael Vernaschi, e José Ricardo Cruz e
Tucci, diretor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
Juristas como Oscar Vilhena Vieira, da FGV, Flavia Piovesan, da PUC-SP e
Salomão Shecaira, da USP.
A lista de entidades que aderiram ao ato também é longa. Entre elas
está a Conectas, o Conselho Regional de Psicologia, a Associação Juízes
para Democracia, a Fundação Rosa Luxemburgo, o Instituto Brasileiro de
Ciências Criminais, as Mães de Maio, o Movimento dos Trabalhadores Sem
Teto e a Human Rights Watch.
No ato, José Carlos Dias leu um manifesto contra a PEC, em nome de
todos os presentes, que será entregue ao Congresso Nacional. Leia o
texto na íntegra:
Manifesto popular e acadêmico contra a redução da maioridade penal
Das Arcadas do Largo São Francisco, do Território Livre da Velha e
sempre Nova Academia de Direito de São Paulo, dirigimos, aos
brasileiros e às brasileiras, este Manifesto popular e acadêmico contra a
redução da maioridade penal, fruto do dever que temos, cientes e
conscientes das mazelas de nossa democracia formal, de lutar pelos
ideais que possam nos levar, um dia, a uma democracia real e
verdadeiramente igualitária.
Dito isso, não recuaremos um passo sequer. Nem mesmo quando a
disputa pelo poder político coloca em risco o processo civilizatório,
que demarcou a idade de 18 anos completos como requisito mínimo para o
exercício da violência estatal por meio do sistema de justiça criminal.
Sustentamos, hoje aqui reunidos sem qualquer sectarismo, uma luta em
prol da Liberdade. À luz e à sombra dessas Arcadas, reconhecemos que as
cortes, as faculdades e as tribunas são parte inseparável do povo e
precisam, por isso, somar forças na luta contra o Direito Penal do
terror.
Reconhecemos, ainda, nossa posição privilegiada na estrutura
social em relação às vítimas diárias de nosso sistema penal, o povo
pobre, jovem, preto, preso. Enquanto somos titulares de direitos e de
prerrogativas, a eles restam deveres e responsabilidades impostas pelo
aparelho de coerção do Estado, sem que contem com nenhuma condição de
exercer seus direitos fundamentais declarados. A vulnerabilidade frente
ao sistema penal, claramente, não se distribui de forma similar,
orientando-se este a recolher os que engrossam as fileiras de setores
mais marginalizados e humildes da sociedade.
Não há justiça, nem igualdade. Seu desempenho, claramente
antidemocrático, promove não a proteção dos direitos humanos, mas sim, a
degradação e a estigmatização de vulneráveis que lhe são específicas.
É, portanto, a luta incessante pela concretização dos direitos
fundamentais que nos compele a condenar radicalmente qualquer tentativa
de dissolver a garantia de inimputabilidade dos menores de dezoito anos,
cláusula pétrea da nossa Constituição, evitando com isso o
recrudescimento punitivista alheio à brutal realidade penitenciária
brasileira e ao caráter intrinsecamente opressor de nosso sistema penal,
e que ignora as implicações que qualquer mudança na lei criminal tem
sobre a construção da já parca cidadania dos jovens brasileiros,
especialmente, a juventude pobre e negra.
Negamos, assim, qualquer tipo de demagogia que, sob a premissa de
garrotear a liberdade, descumpra a Constituição em seus preceitos mais
básicos e fundamentais – ainda que, mesmo que “protegidos”, estes sejam
descumpridos todos os dias. Coexistimos em uma sociedade desigual, sem
casa, comida, educação e liberdade para todos. Nela, é preciso lutar
para viver. Em certos casos, lutar para não morrer. Clama tal projeto
por mais segurança, e nós perguntamos: para quem? Considera esse projeto
que a juventude da Nação, carente até mesmo de alfabetização digna e de
condições mínimas de realização de suas vocações, seja livremente capaz
de escolher entre uma chamada “vida de crimes” e o exercício exemplar
da cidadania. A essa juventude, entretanto, não resta cidadania.
É esse um projeto incrível em seu absurdo existencial. Citam seus
autores com ignorante audácia nosso irmão Ruy Barbosa, dizendo que “é
melhor educar a criança de hoje do que punir o adulto de amanhã”. Não
imaginamos mais fria analogia que aquela que entende que punir é educar.
Punir com a reclusão, sem projeto pedagógico, sem estrutura. Um projeto
que quer erradicar a violência combatendo os efeitos, ao invés das
causas. Mais, um projeto que não combate efeitos, visto que o maior
rigor punitivo de nada tem a ver com a redução dos índices de violência.
Para nós, esse projeto é nada mais que a expressão de um desejo
de vingança social que tem como alvos jovens que, na mais tenra idade,
já interiorizaram a agressão de um Estado ausente em suas obrigações
sociais, mas presente através dos mecanismos de repressão. Nossas vozes
dirão a esse projeto que ele não passará. Tomar como resposta a
penalização desses jovens é admitir e aceitar de forma resignada que o
Estado falhou em seu dever e que nossa Democracia não serve a todos. Nós
nos recusamos a desistir da Democracia.
Nós nos recusamos a esquecer de que esses jovens têm direitos e
que é o Dever-Maior da Nação protegê-los da privação, da violência e da
destruição do potencial oprimido dentro de si. Não aceitaremos jamais a
condição de se impor deveres sem antes permitir o exercício de direitos.
Consideramos ilegítimos os legisladores que usam de seu poder para
privar seus iguais – ou não tão iguais – do amparo que lhes é devido.
São esses os mesmos que fecham os olhos para as violações de direitos
humanos por toda a Nação, ignorando as mortes de inocentes enquanto
exercem cargos de representantes do povo. Ilegítimo é o legislar banhado
no sangue dos seus. Não aceitaremos o encarceramento da juventude
brasileira.
Não compactuaremos com a condenação dos jovens à pena de
desumanização, implicação indelével à vida de qualquer um que cumpra
pena no sistema carcerário brasileiro. Não permitiremos que se exponham
esses jovens a abusos físicos, sexuais, psicológicos e morais, tanto por
parte de companheiros de cela como por parte das autoridades. O Projeto
da PEC 171 tem propósitos claros: a manutenção da segregação econômica,
a negação de nossos graves problemas sociais e a preservação de
estruturas conservadoras através da desmesurada violência estatal.
A nós nos repugna tão vil tentativa de se legitimar o genocídio
da juventude, especialmente a negra, a perseguição à população pobre e a
violência de instituições de essência inegavelmente antidemocrática
contra os cidadãos. Faz-se evidente que o que entrega a juventude à
violência é o descumprimento do respeito a valores soberanos, expressos
em nossa Constituição, como o direito à vida, à saúde, à alimentação, à
educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, à
liberdade e à convivência familiar e comunitária, além do direito de
viver livre de toda forma de negligência, discriminação, exploração,
violência, crueldade e opressão.
É por esses valores que queremos que se orientem nossas
instituições e as leis que as regem, pois somente assim conseguiremos
dar condições para a autorrealização plena das crianças e dos
adolescentes. Não queremos nada além. É nosso dever lutar pela Liberdade
da juventude, ecoando na noite de hoje o libelo da Carta aos
Brasileiros, cuja memória é fundamental sempre que as conquistas
democráticas estiverem em perigo. Cabe à consciência jurídica cobrar
isso do Brasil, junto ao seu povo, em um só clamor: NÃO à redução da
maioridade penal!
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