sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

AS SOMBRAS DOS ANOS DE CHUMBO.

"Ditadura tinha uma máquina de ocultar cadáveres"

Em audiência, ex-militante da ALN lembra como irmãos e companheiros de luta armada foram enterrados com outros nomes.

Na tentativa de esconder a tortura e as barbáries cometidas pelo Estado, a ditadura brasileira contava uma engenhosa logística para enterrar os corpos de oposicionistas mortos em seus porões. Segundo Iara Xavier Pereira, ex-militante da ALN (Ação Libertadora Nacional) que depôs nesta segunda-feira 24 à Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva” e à Comissão Nacional da Verdade, os agentes mantinham uma verdadeira “máquina de ocultação de cadáveres”.
“Era algo que passava pela conivência do IML, pela dos cartórios, e dos médicos legistas que adulteravam os óbitos que chegavam à Justiça. Uma máquina perfeita com modus operandi de ocultação e montada para acobertar esses crimes”, afirmou.
Carioca e filha de comunistas, Iara perdeu os irmãos Iuri e Alex Xavier, o companheiro Arnaldo Cardoso e os amigos Marcos Nonato da Fonseca, Ana Maria Nacinovic, Gelson Reicher, Francisco Seiko Okama, Francisco Emmanuel Penteado. As mortes ocorreram em três ações repressivas em São Paulo, um intervalo de 14 meses, entre janeiro de 1972 e março de 1973.
Segundo Iara, Alex e Gelson foram enterrados com os nomes de João Maria de Freitas e Emiliano Sessa (utilizados na militância). Um certificado militar encontrado em documentos do Superior Tribunal Militar mostra que Gelson portava no momento de sua morte carteira de identidade, identificação do centro acadêmico, certificado de rendimento, assim como uma série de documentos de Emiliano Ernesto, falsificados para a vida clandestina. “Cai, então, por terra a versão dos militares de que o haviam enterrado com outro nome por não saber quem ele era”, explica. “É a prova que ocultaram por alguma razão. Não foi gratuito.”
Ela lembra ainda que o médico que assina o laudo, Isaac Abramovitch, era vizinho da família de Gelson e seu professor na Faculdade de Medicina da USP. O médico não teria, portanto, avisado a família do militante da ALN, o que contribuiu para que ele fosse enterrado como indigente no Cemitério Dom Bosco, em Perus.
Corrobora a tese o depoimento de Antonio Eustáquio, administrador do Cemitério de Perus entre 1976 e 1992. Eustáquio conta ter encontrado no arquivo do cemitério declarações de óbito que identificavam os militantes de esquerda contrários ao regime com um T vermelho carimbado no documento. “Inicialmente, eu não sabia que eram ‘terroristas’. Vim saber que aquela letra T vermelha era uma declaração de óbito que indicava isso mais tarde, por causa do número de visitas anormais, de familiares em carros com placas de outros lugares, como Rio de Janeiro.”
Apesar de não haver separação entre os locais onde eram enterrados militantes e indigentes, Eustáquio lembra: diferentemente dos camburões que traziam cinco ou mais corpos indigentes, os militantes de esquerda chegavam um a um – e acompanhado por um forte aparato militar. “Eles ficavam no portão do cemitério na entrada e proibiam entrada e saída de qualquer pessoa até que se sepultasse aquela pessoa”, conta. “Isso era feito de dia. Em alguns casos, a própria polícia chegava a sepultar o corpo.”
Em relação à Vala de Perus, Eustáquio conta tê-la descoberto anos mais tarde, quando funcionários do cemitério lhe contaram. O descobrimento tardio, no entanto, não o impediu de receber ameaças para ocultar informações sobre o tema. “Depois da Anistia, quando familiares começaram a procurar o cemitério, fui chamado para uma reunião no Hotel Jaraguá, no centro, da qual deveria participar o prefeito Mário Covas. Nela, disseram para eu não dar muito alarde ou informações a respeito daquela vala ou mesmo de pessoas que pudessem ser procurados como indigentes”, rememora. “A orientação era para não dar entrevista, não falar a respeito dos registros de óbitos e nunca mostrar os livros com eles.”

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