quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

De quem é esta terra?

O sul da Bahia enfrenta violentos conflitos que marcaram seu passado e definem o presente. Movimentos de reforma agrária, povos indígenas e quilombolas lutam por espaço. O agronegócio tenta garantir seu futuro ao buscar soluções inovadoras

 

Em 20 anos no Movimento de Luta pela Terra (MLT), a agricultora Vanderlúcia Cunha Farias, de 40 anos, já participou de quatro ocupações da organização no sul da Bahia. Incluindo a última, onde reside com sua família desde 2010, foram ao todo quatro ações de despejo para reintegração de posse no período. "É muito triste quando isso acontece, todo mundo chora. Já vi mais de uma vez passarem trator por cima do meu barraco com as coisas dentro e plantações inteiras serem destruídas na época da colheita, deixando as crianças sem ter o que comer", conta.

Como muitos no movimento, criado em 1994, Vanderlúcia se viu sem ter onde morar e subsistir da terra quando perdeu o emprego em uma grande fazenda de cacau castigada pela vassoura-de-bruxa, praga que assolou o recôncavo baiano entre as décadas de 1980 e 2000. Hoje, ela e 85 famílias, produtoras de mandioca, feijão, milho e abacaxi, estão esperançosas de que conseguirão se assentar de maneira definitiva no acampamento Baixa Verde, fundado sobre 1.330 hectares de uma propriedade de eucaliptos no interior ermo de Eunápolis, cidade a 680 quilômetros da capital, Salvador. "Estamos esperando apenas o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) homologar a demarcação, mas já faz quatro anos que essa disputa continua", afirma a lavradora. A pedido do MLT para fazer a discriminação da área, a CDA da Bahia (Coordenação de Desenvolvimento Agrário) reconheceu que ali era uma terra devoluta do estado, grilada no passado e adquirida ilegalmente pela Veracel Celulose. 

Disputas como essa são uma realidade constante no sul da Bahia. Desde a década de 1970, a região da Costa do Descobrimento tem se caracterizado pela produção de celulose de eucalipto e pela concentração de propriedades rurais por indústrias do segmento agroflorestal, cenário que tem colocado empresas em rota de colisão com militâncias que reivindicam a reforma agrária, comunidades indígenas e quilombolas nos tempos de hoje. O plano de desenvolvimento, idealizado pelo então governo militar (1964-1985) nessa parte do Brasil, previa a criação de diversos Distritos Florestais, que se estenderiam do Nordeste ao Norte do país. Até aquele momento, essa atividade econômica estava restrita ao Sudeste.

"A ditadura foi um período marcado pela estruturação do agronegócio como modelo econômico para o país, impulsionada pelo apoio direto ou indireto do governo ao latifúndio. Os militares seguiam uma tendência mundial de financiar a agricultura e o monocultivo de grande escala", comenta o professor Bernardo Mançano, coordenador do Núcleo de Estudos, Pesquisas e Projetos da Reforma Agrária (Nera) da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp). Ele ressalta que o período entre as décadas de 1960 e 1980 foi o momento mais crítico de expansão de commodities para exportação no país, como a cana-de-açúcar, a soja, o algodão, o cacau e a celulose. "A questão histórica que resulta nos conflitos de terra até hoje é que, a cada novo ciclo de produção dominante no Brasil, os empreendimentos quase totalitários do agronegócio têm causado sérios problemas para a pequena produção. Em alguns casos, os povos tradicionais e a agricultura familiar, que não são grandes produtores capitalistas, são vistos como obstáculo para esses projetos voltados para a exportação", diz Mançano. 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário